Nora K. Jemisin teve seus primeiros originais recusados por editoras, o que confirmava seu ceticismo em conseguir ser escritora, uma vez que ela pensava que não teria muitas chances por ser mulher e negra. Mas como toda pessoa de fibra, de caráter, ela não desistiu. Inspirada pelas obras de Octavia Butler, que se você não sabe quem é, é apenas uma das maiores romancistas da atualidade, também mulher e também negra, Nora persistiu, conseguiu publicar seu primeiro livro, o segundo, o terceiro, tornou-se a primeira mulher negra a ganhar um Hugo, o maior prêmio da ficção-científica do mundo, feito que repetiu nos dois anos seguintes, e hoje é considerada a escritora que está revolucionando o gênero. Preciso dizer algo mais para despertar sua curiosidade sobre os livros de Nora? Acho que não, né?
A QUINTA ESTAÇÃO e O PORTÃO DO OBELISCO ganharam os Hugo em anos seguidos, um feito incrível, uma vez que um é a continuação do outro. E todos vocês sabem como é difícil a continuação de um livro, de uma trilogia, principalmente o segundo que costuma ser arrastado e preparar o terreno para o terceiro, manter a qualidade do primeiro. Bem, Nora também conseguiu essa proeza. O segundo é tão bom, na verdade, melhor, do que o primeiro. Não por menos conseguiu o prêmio.
No universo criado por Nora, um planeta está sendo destruído por constantes terremotos, erupções vulcânicas, tsunamis, atividades que deveriam ser naturais, mas que muitos pensam ser consequência de alguém, ou de um grupo de pessoas. Isso porque existem homens e mulheres, chamados de Orogenes, que possuem a capacidade de controlar eventos sísmicos. Eles são extremamente perigosos, por isso são mortos, ou presos e enviados para um local chamado de o Fulcro, onde são controlados e treinados para diminuírem essas atividades e evitarem que o planeta se quebre ao meio. A esse evento que está modificando a terra, eles chamam de a Quinta Estação. Só não sabem se irão conseguir sobreviver a ela.
A narrativa de Nora é um ponto em destaque, uma vez que ela consegue alternar em dois estilos diferentes, e em um deles, ela consegue levantar uma dualidade que faz com que o leitor duvide um pouco da veracidade do que está lendo. Como assim? Explico: a história é sobre três personagens, três mulheres, e a narrativa de uma delas é em segunda pessoa, ou seja, a personagem é você. Nora não escreve que ele fez algo (terceira pessoa), ou que eu fiz algo (primeira pessoa), mas que você fez algo (segunda pessoa). Eu só li uma outra obra que usa a segunda pessoa como narrativa, a série da autora Anna Carey, BLACKBIRD e DEADFALL, cujas resenhas você encontra aqui no blog, e achei tudo fantástico, envolvente, senti que fazia parte da história. Os demais capítulos das outras duas personagens são em terceira pessoa, mas uma delas possui um narrador diferente, alguém que, pela forma como descreve tudo, parece fazer parte da trama, mas o leitor não sabe quem é.
Mas e quem são essas mulheres? Bem, a primeira se chama Damaya, ela é uma adolescente que vive afastada das capitais, em um pequeno vilarejo, e se descobre uma orogene em um momento dramático e emocionante. A família dela, assustada, temerosa, prende Damaya em um celeiro e a deixa à beira da morte. Até que um guardião, Schaffa, um dos homens responsáveis por treinar os orogenes, vai buscá-la e a leva para o Fulcro. A relação desses dois personagens, Damaya e Schaffa, é forte, abusiva, não no sentido sexual, mas educacional, e chega a criar uma revolta em determinadas partes, devido à violência, mesmo Schaffa sentindo um certo carinho por Damaya. A história de Damaya é contada em terceira pessoa de forma tradicional.
A segunda mulher se chama Syenite, ela também é uma orogene e também está no Fulcro, mas não para ser treinada, e sim para servir de reprodutora para Alabaster, um outro orogene extremamente poderoso. Ela deve gerar um filho que possa ser tão poderoso quanto o pai. Syenite é tratada de forma revoltante, semelhante às mulheres da obra de Margaret Atwood, O CONTO DA AIA, mas existe um fator que se diferencia: Alabaster é homossexual e ele considera uma ofensa ser obrigado a ter uma relação com Syenite. Por isso, ele desconta sua frustração nela, sem qualquer piedade. A história de Syenite é contada em terceira pessoa, mas o narrador é íntimo, ele é aquele que comentei acima, que parece fazer parte da história.
Por fim, temos Essun, a personagem que é você, cuja história é contada em segunda pessoa. Ela é uma mulher de mais de trinta anos, também orogene, que um dia chega em casa e descobre que seu filho foi morto pelo seu marido, e que este fugiu com sua filha. Ela, então, parte atrás dele, para resgatar a menina e para se vingar pela morte do menino, além de querer descobrir como viveu tantos anos com alguém se se mostrou um assassino e completo estranho.
Como podem perceber, espero, são dois livros tensos, com personagens fortes, com eventos fortes. Nora cria um mundo fantástico, mas que possui elementos bastante reais, bastante humanos, defeitos bastante humanos, como a violência, o abuso, a intolerância, o preconceito. Ela utiliza a ficção-científica para reverberar nossa sociedade, nossas injustiças. Uma crítica que não é singela, nem disfarçada, mas bastante direta e que atinge o leitor como um tapa no rosto. E para tudo isso, ela utiliza a força de três mulheres, em três histórias distintas, de revolta, de submissão e de vingança, que se unem no final do livro, para passar uma mensagem de superação e de força.
E quanto ao segundo livro? Bem, é complicado falar de O PORTÃO DO OBELISCO. Não por causa da história, que como eu disse, considero ainda melhor do que a primeira, mas porque teria que mencionar coisas que são spoilers do primeiro. O que posso dizer, é que ele desenvolve a relação de alguns personagens que sobrevivem ao primeiro, que conta o que aconteceu com Nassun, a filha sequestrada de Essun, enquanto esteve com o pai, e demonstra que tudo tem mais de uma interpretação, ao desvendar, por exemplo, o passado de Schaffa, aquele guardião que resgatou Damaya do cativeiro imposto pela família dela. Mencionar outros personagens, ou não mencionar, seria complicado. Entregaria duas surpresas que acontecem no primeiro livro. E você não quer isso, quer?
Preciso acrescentar que Nora não criou apenas um universo próprio, mas ela também criou nomes e expressões próprias. Para facilitar nossa vida, ela colocou um glossário extenso no fim dos livros, o que ajuda muito no início da leitura. Assim, você não ficará perdido e conseguirá compreender tudo de forma mais fácil.
E também preciso, novamente, parabenizar a tradução da Aline Storto Pereira, a revisão da Mellory Ferraz e Valentina Amaral, que mantiveram as características do original. O trabalho da editora, com base em obras passadas, como BEM-VINDOS AO PARAÍSO e TIGER LILY, confirma a sequência de traduções primorosas. E vocês não têm ideia de como esse trabalho é importante para a compreensão e para a aceitação de um livro.
A QUINTA ESTAÇÃO e O PORTÃO DO OBELISCO são duas obras da ficção-científica que demonstram como a imaginação não tem limites, ainda mais quando ela vem de uma autora que não brilha apenas pela criatividade, mas pela responsabilidade social, pela preocupação racial, pela luta para se criar pessoas melhores. Duas obras imprescindíveis na sua estante, seja você fã do gênero, ou não.
AVALIAÇÃO:
AUTORA: N.K. JEMISIN é uma autora nova iorquina, cujas histórias foram nomeadas diversas vezes aos maiores prêmios de ficção científica e fantasia do mundo, incluindo o Nebula, Locus e World Fantasy Award. Em 2016, se tornou a primeira pessoa negra a receber o Hugo na categoria principal por seu livro “A Quinta Estação”. Jemisin é considerada uma das mais importantes vozes da ficção especulativa atual, por construir universos ricos e complexos, que vão da fantasia à ficção científica. Suas obras falam sobre justiça social, preconceito, violência e a multiplicidade do comportamento humano. Além de escritora, Jemisin é blogueira política, feminista e antirracista. Atualmente escreve a coluna “Otherworldly” para o New York Times
TRADUÇÃO: Aline Storto PEREIRA
EDITORA: Morro Branco
PUBLICAÇÃO: 2017 e 2018
PÁGINAS: 560 e 528
COMPRAR: A Quinta Estação e O Portão do Obelisco
Que maravilha que a autora não desistiu!!!E sabe o que mais gosto em histórias assim? Normalmente quando um trabalho ou autor é recusado por uma Editora ou várias, normalmente, ele acaba se tornando um ícone tempos depois e está aí um exemplo nítido desta ousadia e persistência!
Acho que isso sim é o acreditar no próprio trabalho!
Ainda não tinha lido nada a respeito dos dois livros,mas pelos prêmios e claro, pelo enredo de ambos os livros, a gente já sabe que é realmente um universo particular e único!
Trazer a humanidade assim, meio que numa pitada de X-Man e mesmo assim, com todos os traços de humanidade é algo fabuloso e com certeza, já quero demais poder conferir os dois trabalhos!
Lista de desejados com certeza.
Beijo
Que emocionante e inspiradora a história da Nora! Nunca desistir dos Sonhos.
As personagens femininas são fortes, independentes forjadas pela dor, que vivem em um mundo cruel.
Gosto de livros como Quinta e Portão que são repletos de críticas atuais e poderosas.
Olá! Embora não leia muito do gênero ficção-científica, fiquei curiosa para conferir sobre esse universo totalmente novo, pela história da autora e os prêmios conquistados com os livros, a escrita da autora parece ser bem instigante e o fato do segundo livro ser ainda melhor que o primeiro é mais um incentivo para iniciar essa leitura.
Eu confesso que pela capa o livro não me cativou, mas essa resenha me deixou curiosa. Não leio muito ficção cientifica, mas é um gênero que gosto e tenho interesse em ler. É bom ler uma resenha escrita com carinho, quando se realmente gosta do livro, dá para sentir a empolgação. É legal quando um livro meche com a nossa cabeça, com a imaginação ou visão que temos sobre as coisas, quando nos faz prestar atenção em todos os detalhes, o escritor que consegue isso é muito bom.
Já vão para a minha lista de livros para ler um dia.
Beijos,
http://www.garotaeraumavez.blogspot.com/
Oi, Jady!
Pois é, fiquei empolgado mesmo. Livros bons fazem isso com a gente rssss
Que legal a autora ganhar o prêmio por ambos os livros! Pela resenha pode ver que a autora tem um potencial absurdo e que faz um ótimo uso dele de variadas formas. Achei interessante esse caso de Alabaster até porque nunca li nada parecido com isso!
Gostei muito e espero conhecer os livros em breve.
Oi, Giovana!
Leia, sim. Vale muito, são excelentes!