Quando a frenética e desgrenhada Edie Ledwell aparece no escritório implorando por ajuda, a detetive particular Robin Ellacott não sabe muito bem como lidar com a situação. Cocriadora de um popular desenho animado ― O coração de nanquim ―, Edie está sendo perseguida virtualmente por uma misteriosa figura que atende pelo pseudônimo Anomia e, em desespero, pede que a detetive descubra a verdadeira identidade de seu stalker.

Robin encerra o encontro informando que sua agência não está habilitada a resolver casos desse tipo. Após indicar alguns concorrentes à mulher, Robin não pensa mais no assunto… Isso até, dias depois, ela ler a notícia chocante de que Edie foi assassinada a facadas no cemitério de Highgate, o cenário onde se passa a animação. A partir daí, Robin e seu sócio, Cormoran Strike, sentem-se instigados e aceitam sair em busca da identidade de Anomia. Porém, confrontados com uma rede complexa de usuários virtuais anônimos, interesses contraditórios e conflitos familiares que precisam navegar, Strike e Ellacott se veem envolvidos em um caso que leva seus poderes de dedução ao limite e que os ameaça de formas novas e horripilantes.

Eu sou fã dos dois personagens da série de livros que J. K. Rowling escreve sobre o pseudônimo de Robert Galbraith. Robin e Cormoran são complexos, donos de um passado extenso, bem construído, que agrega e explica muito do comportamento e da personalidade de ambos. A interação dos dois é deliciosa de acompanhar, seus diálogos, a maneira como são diferentes e, por isso mesmo, se completam. A impulsividade e a coragem de Robin, a frieza e a proteção de Cormoran. Tudo ao redor dos personagens é muito bem escrito e apresentado. E penso que o sucesso da série se deve exatamente a isso.

As tramas de todos os seis livros se desdobram em torno de algum mistério ou crime, mas nenhum desses estopins é tão interessante quanto acompanhar Robin e Cormoran. De maneira bem objetiva, e fazendo um paralelo com obras do mesmo gênero, os enigmas apresentados são sempre simples, não há nada de realmente revelador, surpreendente, e as habilidades de dedução dos detetives são normais, nada de grandes gênios ou sacadas inteligentes. Tudo é muito simples. A criatividade para construir mistérios nunca foi o forte da autora, desde os livros de Harry Potter. E como esses livros, o que realmente torna as histórias memoráveis, são os personagens, suas vidas e o ambiente em que eles interagem. Sem uma Robin e um Cormoran bem construídos, os livros seriam fracos e desinteressantes. E isso pode ser conferido nos comentários dos fãs, há um profundo interesse por Robin e Cormoran, e o resto é apenas um complemento sem tanta importância assim.

Entretanto, após seis livros, essa dinâmica entre Robin e Cormoran começa a cansar. Isso porque, embora todos os motivos apontados acima, ela não está evoluindo. Os dois personagens estão, basicamente, no mesmo ponto de relacionamento há pelo menos quatro livros. Há uma enrolação óbvia que deixou de fazer sentido. Robin e Cormoran compartilham uma química palpável e uma profunda conexão emocional. No entanto, o romance entre eles nunca é plenamente consumado, criando uma tensão sobre se eles vão ou não vão ficar juntos ao longo dos seis livros que nunca avança. Os motivos iniciais, como Robin ter sido contratada, o casamento que ela mantinha com um abusador, e o relacionamento opressivo de Cormoran com sua ex-esposa, que eram os principais empecilhos, já foram resolvidos faz três livros. E desde então, nada mais acontece.

Em O CORAÇÃO DE NANQUIM é apresentada uma nova personagem que se torna o interesse de Cormoran, mas apenas como escape para a falta de coragem de se declarar para Robin. O novo romance é óbvio e já se anuncia um desastre. São páginas e mais páginas de uma relação fadada ao fracasso, sem qualquer propósito. O mesmo acontece com as aparições insistentes da ex-esposa de Cormoran. A história dos dois foi encerrada nos livros anteriores, não há mais um real propósito para ela continuar aparecendo como uma barreira. É uma repetição que já se tornou cansativa. Ainda mais quando inserida em mais de 1000 páginas. Aliás, eu não consegui encontrar explicação para tantas páginas.

O CORAÇÃO DE NANQUIM possui dois graves problemas de narração e um outro de posicionamento. O primeiro é o excesso de partes sem qualquer objetivo para a trama. E são muitas. No ponto em que a série está, não é mais necessário criar trechos e mais trechos para explicar a relação dos personagens, ainda mais de casos paralelos para a agência de detetives que não tem qualquer ligação com o mistério central e não agrega nada de novo aos personagens. São apenas páginas sem interesse que tornam a leitura cansativa. O segundo problema, no caso específico deste livro, são as dezenas de páginas de diálogos de fóruns na Internet, mensagens no Twitter e de aplicativos de chat. Compreendo a necessidade de inserir alguns para contextualizar a perseguição que a vítima sofre nas redes sociais, mas a maioria é composta de troca de mensagens sem qualquer interesse, repetitivas, em excesso, em muito excesso, ao ponto que se torna uma tortura ter que ler tudo.

Já o terceiro problema, da mesma maneira que aconteceu em SANGUE REVOLTO (resenha aqui), a autora parece ter criado uma história para criticar o que acontece em sua vida pessoal. Para quem não sabe, e acho difícil alguém que lê os livros da autora não saber, ela costuma postar comentários nas redes sociais, principalmente no Twitter, sobre identidade de gênero e direitos trans. Em várias ocasiões, desde 2019, Rowling fez declarações trans-excludentes ou transfóbicos. Ela expressou preocupações sobre o que vê como uma erosão dos direitos das mulheres e sobre a definição de mulher, invalidando a identidade das pessoas trans, espalhando desinformação e prejudicando a comunidade trans.

Em seus tweets e escritos, Rowling expressou a crença de que o sexo é uma realidade biológica e que não pode ser mudado. Porém, a compreensão da identidade de gênero reconhece que gênero e sexo são duas coisas diferentes e que o gênero não é estritamente binário. Rowling expressou preocupações de que permitir que pessoas trans mulheres (indivíduos designados como do sexo masculino ao nascer, mas que se identificam como mulheres) acessem espaços femininos poderia colocar mulheres cisgênero (aquelas cuja identidade de gênero corresponde ao seu sexo designado ao nascer) em risco. Tal visão perpetua estereótipos errôneos de que pessoas trans são predatórias, quando, na realidade, são elas que estão em maior risco de violência e discriminação.

Rowling também expressou preocupações sobre jovens que buscam tratamentos médicos para transição de gênero, sugerindo que alguns podem se arrepender mais tarde. Enquanto existem discussões legítimas sobre o melhor tratamento para jovens trans, Rowling apresentou uma visão simplificada e não baseada em evidências do assunto. É importante notar que a controvérsia não é apenas sobre a desinformação que a autora perpetua, mas também sobre como as declarações dela são desrespeitosas ou invalidantes para as experiências de pessoas trans.

Enquanto em SANGUE REVOLTO, a autora cria um assassino em série que se veste de mulher para capturar suas vítimas, uma decisão criativa que parece reforçar seu ponto de vista na vida real, ao mesmo tempo que aumenta a falsa percepção da mídia e literatura que usa o padrão de “homem vestindo-se de mulher para enganar ou causar dano”, agora, em O CORAÇÃO DE NANQUIM, Rowling utiliza da trama de uma criadora bilionária de um desenho animado de sucesso que é atacada nas redes sociais por seus fãs, que pararam de gostar dela por causa de suas opiniões publicamente declaradas. A premissa de pessoa rica e poderosa que está em perigo mortal nas mãos de alguma conspiração secreta de vigília em oposição à violência realmente perpetrada contra comunidades marginalizadas.

Aliás, a série animada do livro parece retratar um conjunto de minorias que a autora costuma ignorar. Nos personagens há indícios de anti-semitismo, racismo, além da existência de um personagem hermafrodita, que é um óbvio gatilho para crianças não binárias, e um outro que tem várias partes do corpo perdidas que podem ofender os deficientes físicos. A sensação que é passada em muitas partes da leitura, é a de uma pessoa odiosa escrevendo discursos desagradáveis ​​sobre seus críticos, utilizando o disfarce de um romance. O que em SANGUE REVOLTO aparecia de maneira mais disfarçada, agora em O CORAÇÃO DE NANQUIM aparece escancarado, sem qualquer pudor de disfarçar o real objetivo da história, criticar quem é contra o posicionamento da autora, principalmente seus fãs.

Assim, depois da leitura de O CORAÇÃO DE NANQUIM, de todos os problemas que ele carrega e da clara mensagem deixada pela autora que corrobora seu posicionamento na vida real, fica impossível continuar a série, mesmo amando os dois personagens principais. Penso que é pertinente separar a obra do autor, como fiz durante a recente leitura dos livros de Harry Potter, mas quando a autora insere na sua obra seus pensamentos preconceituosos e deturpados como forma de resposta a seus críticos, não é mais possível continuar a leitura. Deixa de ser ficção, para ser um discurso que reforça estereótipos e desinformação, afetando minorias e grupos que precisam de ajuda e não de mais ataques. Não pretendo mais ler nenhum livro da série e recomendo o mesmo para quem tiver o mínimo de compaixão e sensibilidade.


AVALIAÇÃO:


AUTORA: Robert Galbraith (J. K. Rowling)
TRADUÇÃO: Edmundo Barreiros
EDITORA: Rocco
PUBLICAÇÃO: 2023
PÁGINAS: 1024