Aliviada depois de as filhas já crescidas se mudarem para o Canadá com o pai, Leda decide tirar férias no litoral sul da Itália. Logo nos primeiros dias na praia, ela volta a atenção para uma grande família napolitana, barulhenta e grosseira, semelhante a sua própria família de origem, da qual conseguiu escapar aos dezoito anos para estudar em Florença. Sentindo por eles uma mistura de repulsa e fascínio, Leda se identifica em especial com Nina, uma jovem mãe, e Elena, sua filha pequena, e se envolve cada vez mais com as duas e com o objeto de afeto da menina, uma boneca. Nina inicialmente parece ser a mãe perfeita e faz Leda se lembrar de si mesma quando jovem e cheia de expectativa. A aproximação das duas, porém, desencadeia em Leda uma enxurrada de lembranças, das infância infeliz a segredos da vida adulta que ela nunca conseguiu revelar a ninguém.

A FILHA PERDIDA trata essencialmente do tema maternidade, pelo menos na superfície. Entretanto, eu penso que o assunto verdadeiro, aquele que realmente move Leda, é a perda da sua essência como mulher, como pessoa, a perda de sua individualidade e liberdade. Apesar de eu ser homem, de não ser meu lugar de fala, de se impossível ter qualquer noção do que é gerar uma vida e vê-la nascer de dentro de meu corpo, quando entrei na fase adulta e após algumas situações familiares complicadas, eu consegui enxergar minha mãe como uma mulher, e não como aquele ser perfeito, totalmente dedicado, não passível de falhas ou de desejos, que estaria sempre pronta para me acolher. Ser mãe não apaga ser mulher. Se para os filhos é difícil distinguir essa diferença, para as mães, muitas vezes, é difícil não se deixar apagar e perder sua posição de mulher.

De maneira geral, não há como a relação de pais e filhos ser equilibrada. Enquanto um lado necessita de cuidados e atenção, sugando tudo o que é possível de seus provedores, como dita a natureza, do outro lado nasce o desejo de recompensa ou de reparação. Os pais colocam nos filhos a expectativa de concretizações que eles não conseguiram realizar. Mas os filhos são seres de vontades próprias que nem sempre se equiparam às expectativas dos pais. Nasce o conflito da cobrança contra a liberdade. E o resultado é a frustração de planos não realizados, de ingratidão nem sempre justificada, de conflitos em ideias e posições.

Na história, Leda se anula como mulher e como pessoa quando tem duas filhas. Como é padrão da sociedade patriarcal e machista, o marido se isola no trabalho, enquanto Leda abandona a profissão e se dedica à maternidade em tempo integral. Para uma mulher ativa, isso se torna sufocante, causa pânico e a leva à beira da depressão. Em um movimento para tentar manter a sanidade, deixa as filhas aos cuidados do marido e desaparece por três anos. Obviamente o seu retorno à família é envolto por cobrança, julgamentos e recriminações, até que as filhas tomam a decisão de sair de casa e irem viver com o pai.

A narrativa de Ferrante demonstra de maneira clara que o peso da cobrança e responsabilidade é sempre maior nos ombros da mulher. Embora Leda tenha fugido, as filhas não foram abandonadas, ficaram aos cuidados do pai. Quando Leda retorna e o marido vai embora, deixando as meninas com ela, não existe a mesma cobrança de responsabilidade. É uma posição estabelecida na nossa sociedade e que parece impossível de ser revertida. Com os anos, Leda perde o prazer de ser mãe, desiste do sonho de ser reconhecida pelas filhas. Os trechos em que elas conversam por telefone, quando Leda espera que elas se interessem por como se sente ou sobre o que pensa, mas recebe apenas reclamações, críticas e cobranças, são tristes e fáceis de identificar com situações que presenciamos ou mesmo que concretizamos com nossas mães.

A viagem de Leda para o litoral é sua tentativa de se encontrar, de tentar recuperar seu papel como mulher, sem necessariamente perder o amor que sente pelas filhas. Leda tenta compreender como equilibrar a Leda mãe com a Leda pessoa, quando deixar suas vontades à frente e quando atender as vontades das filhas. Mais ainda, ela tenta descobrir qual o verdadeiro papel de mãe, onde errou na criação das filhas, se realmente errou, e se deve continuar a se culpar pelos erros que cometeu, se é que os erros realmente foram sua responsabilidade. E a primeira chance que ela tem de tentar chegar a uma conclusão, é quando começa a observar a tal família napolitana.

Nesse ponto acontece uma bifurcação de pensamentos e sentimentos em Leda. Em Nina e a filha Elena, Leda tenta observar como é ser uma mãe presente, dedicada, paciente e amorosa, uma vez que Nina parece preencher todos esses requisitos. Já a família enorme de Nina, recuperam em Leda memórias traumatizantes da sua relação com a mãe e sua necessidade de ter se afastado para deixar de sofrer. Essa terapia realizada pela própria, desencadeia sentimentos profundos e repercutem em pequenas ações impensadas e insensatas.

Uma dessas ações é o sequestro da boneca de Elena. O objeto possui uma enorme gama de representações. A primeira é feita com Leda recordando a época em que as filhas ainda eram crianças e deu para uma delas sua boneca de infância. Leda sentia grande estima pelo brinquedo e considerou que a filha poderia ter a mesma emoção. No entanto, isso não acontece, pelo contrário, o que causa um enorme desapontamento e raiva em Leda, que destrói a boneca. O trecho transmite a fragilidade da personagem ao tentar se conectar com as filhas e seu desespero quando não consegue. O fato é que os objetos que nos representam, que amamos, pertencem apenas a nós. Sua simbologia faz sentido para nós, porque não é o objeto que transmite, somos nós que colocamos no objeto o que desejamos e precisamos. Quando damos esse objeto para outra pessoa, ele vai vazio, sem significado, e a outra pessoa não tem como sentir pelo objeto o mesmo que nós. Entretanto, a nossa expectativa é que o objeto leve com ele tudo o que ele representa, mas isso é impossível.

A boneca foi roubada por Leda na praia, e por conta desse local, veio com um pouco de água em seu interior. Por toda a história, Leda prorroga a limpeza da boneca, evitando tirar de seu interior o líquido que apodrece com o passar dos dias. O trecho em que ela, finalmente, esvazia a boneca, remove toda a sujeira, e junto vem algo mais, pode ser compreendido de diversas maneiras por pessoas diferentes. Pode significar que por mais difícil, mais ingrata, que seja a posição de ser mãe, no fim, a criação de uma nova vida pode compensar tudo.

Em uma terceira representação, a boneca seria a própria Leda, que mantém dentro de si sentimentos conflitantes, negativos, a água apodrecida, por não saber agir como uma mãe por definição da sociedade e nem se posicionar como mulher, até que finalmente extirpa os sentimentos que a torturam, expelindo a água do corpo da boneca, e consegue compreender e aceitar seu papel de mulher e seu papel de mãe, ambos em paz. Logo após, Leda libera a boneca e a devolve à dona.

Penso existirem várias outras interpretações. O texto de Ferrante é cheio de simbologia, a maioria delas óbvias, mas nem por isso menos profundas. Não é uma narrativa confusa ou densa, pelo contrário, é bastante objetiva, o que facilita para o leitor encontrar os pontos em que precisa refletir sobre o que significam para as personagens e quais as mensagens que a autora está transmitindo.

A FILHA PERDIDA pode ser interpretado como um livro injusto com a maternidade. Afinal, Leda é a representação da mãe que fracassou. Ela se sente destruída, as filhas saíram de seu convívio, o marido a abandonou, ela está sozinha, martirizada, em uma idade que não deixa muito tempo pela frente. Penso o contrário. Leda chega na praia para descansar e confirmar o que o seu íntimo já sabia: ela é imperfeita, como qualquer outra pessoa, e se deu conta de que não há uma fórmula para educar os filhos. Seguindo a famosa frase, eles não pediram para nascer, não nos devem nada, e isso é verdade. A decisão da vida é dos pais, não dos filhos. Como seres únicos e individuais, não tem como obrigá-los a retribuir todo o amor e sentimento depositado pelos pais enquanto eles são crianças e dependentes. Faz parte da natureza o abandono aos progenitores. O erro reside nos pais em esperar algo em troca. É a esse entendimento que Leda chega, e isso a deixa devastada.

Ainda em uma segunda descoberta de Leda, está a família de Nina. Uma família numerosa, repleta de membros singulares, e que por isso traz junto todo o peso das cobranças e julgamentos. O que de início se mostra harmonioso, aos poucos, Leda percebe que não existe qualquer equilíbrio na relação dessas pessoas. Até mesmo Nina, que naquela primeira observação se mostrava uma mãe presente e praticamente perfeita, começa a ter suas nuances descobertas, como mãe, como esposa e como mulher. Então ao invés de enxergar Nina como modelo, Leda percebe que Nina é tão ou mais imperfeita.

O filme da Netflix que adapta o livro é bastante fiel, obviamente menos intenso, uma vez que muito do que Leda pensa e sente, dificilmente conseguiria ser representado apenas com expressões. Mas é um excelente filme que vai além do final do livro para apresentar uma conclusão mais otimista. No livro, Leda termina com uma frase de conformismo, um diálogo curto com uma das filhas, onde resume de maneira inequívoca como compreende sua situação atual e a sua inevitabilidade de mudar. Sim, porque mesmo que ela tenha conseguido encontrar sua posição como mulher e como mãe, não quer dizer que possa consertar o que já está quebrado. No filme, há essa tentativa.

A FILHA PERDIDA é uma obra contemplativa, profunda, que gera uma enorme variedade de temas para discussão e análise. Pode passar a sensação de ingratidão ou de incompetência por Leda não conseguir realizar o que a maioria das mulheres consegue. Mas a pergunta que se deve fazer é: essas mulheres se sentem realizadas ou precisaram abrir mão desse direito para se dedicar inteiramente à sua prole? Muitas, talvez a maioria, consiga, até mesmo deseje, mas não é regra e nem obrigação. E quem não consegue, tudo bem, não há regra que não tenha exceção.

A título de curiosidade, Elena Ferrante é o pseudônimo de uma escritora italiana, cuja identidade é mantida em segredo. Ela concede poucas entrevistas, todas elas por escrito e intermediadas pelas suas editoras italianas. Nelas, explica que optou pelo anonimato para poder escrever com liberdade, e também para que a recepção de seus livros não seja influenciada por uma imagem pública.


AVALIAÇÃO:


AUTORA: Elena Ferrante
TRADUÇÃO: Marcello Lino
EDITORA: Intrínseca
PUBLICAÇÃO: 2016
PÁGINAS: 176