Carrie White é uma adolescente tímida, solitária e oprimida pela mãe, cristã ferrenha que vê pecado em tudo. A rotina na escola não alivia o dia a dia em casa. Para os colegas e professores, ela é estranha, não se encaixa e, por consequência, é alvo constante de bullying. O que ninguém sabe ainda é que, por trás da aparência frágil e indefesa, Carrie esconde um enorme poder: ela consegue mover objetos com a mente. Trancar portas. Derrubar velas. Dom ou maldição, isso mudará para sempre o destino das pessoas que algum dia lhe fizeram mal.

Carrie, a personagem, é o reflexo de pessoas que são submetidas diariamente à pressão de uma família fanática, que usa da religião como forma de opressão, castigo e obliteração da liberdade individual, e que não encontra forças ou ajuda para combater constantes torturas na escola, perpetuadas por colegas que se acham superiores e focalizam a frustração em cima de quem não se pode defender. As partes mais difíceis de serem lidas em CARRIE, são exatamente as partes em que Carrie sofre esses ataques, tanto das colegas, como da própria mãe. É sufocante perceber que a garota não tem paz na escola e não tem paz em casa. Uma vida totalmente preenchida pelo sofrimento, pelo medo, pela falta de esperança e perspectiva.

Mas Carrie sofre mais tipos de violência além dos citados acima. Ela também sofre a violência da ignorância imposta. Por exemplo, ela não sabe absolutamente nada sobre o próprio corpo, sobre como é a transformação biológica que todos sofrem na adolescência ou mesmo o motivo de tantos sentimentos conflitantes e tantas inseguranças. Isso é exposto no livro na parte em que Carrie descobre o que é menstruar. Ela pensa que está morrendo. Óbvio que sofre bullying por conta disso, mas também é terrível perceber como a falta de conhecimento, exercida pela mãe e por uma educação escolar precária e ineficiente, pode ser algo terrível, que compromete a sanidade de um adolescente. Na época da escrita do livro, acredito que muitas escolas americanas não tinham no currículo educação sexual. Na verdade, muitas ainda não devem ter. O mesmo no Brasil. É um tema indispensável para se ter nas escolas. Muitos pais se abstém de passar aos filhos, principalmente às filhas, o conhecimento sobre o próprio corpo e as mudanças que sofremos com a puberdade, além de muitas outras informações que são cruciais para nosso amadurecimento. É um papel da escola passar essas informações. É parte da biologia do ser humano e uma parte fundamental do crescimento.

Os personagens Sue e Tommy representam as pessoas que compreendem o quanto o bullying é errado e passam a combatê-lo. Eles se afeiçoam a Carrie, principalmente Sue, e tomam atitudes para defendê-la, para tentar ajudá-la a se tornar uma pessoa mais informada, mais livre, a vencer seus traumas e complexos. Mas é uma tarefa quase impossível quando o ambiente é rodeado por contrários, ainda mais dentro da casa de Carrie. Sue é a personagem mais fácil de se criar uma empatia, ela representa o leitor, ela se revolta como o leitor, e tenta agir como o leitor gostaria de agir. E Tommy apoia Sue em todas as decisões. Não apenas porque ama Sue, mas porque se compadece de Carrie e compreende seu sofrimento. Mas Sue e Tommy são o resultado de uma máxima conhecida: toda boa ação será castigada. E eles são. Infelizmente.

Tem uma outra construção que é muito bem feita no livro e igual em qualquer versão dos filmes, os dois vilões: Chris e Billy. O casal desperta repulsa, ódio em qualquer das mídias. Principalmente Chris. A personagem reúne em si tudo o que existe de negativo sobre bullying. Ela é impulsionada apenas pela maldade, pela possibilidade de fazer mal a uma pessoa que, em tese, não pode se defender. Pelo sentimento de poder, de achar que controla e que pode exercer sobre o outro qualquer de suas vontades. Chris é a imagem perfeita da pessoa que não conhece dificuldades, desafios, que é acobertada pela família, que sabe que pode se safar de qualquer problema por ter dinheiro e contatos. Suas ações são inconsequentes porque ela se considera acima das consequências. É uma personagem feita para ser detestável, mas que encontra na realidade pares que cometem os mesmo atos, com a mesma arrogância, prepotência e proteção. E isso é o mais terrível: a constatação de que apesar de Chris reunir tantos defeitos, ela não é puramente ficcional por conta disso. Pelo contrário. Os iguais a ela são facilmente identificáveis na vida real.

Existe uma comprovação de como Chris é real no prefácio do próprio livro. As páginas iniciais de CARRIE são preenchidas por palavras de Stephen King que contam como ele criou a história. Carrie, a personagem, é o resultado das lembranças de King sobre duas garotas, duas colegas de escola, que sofreram bullying, tinham famílias desajustadas, sofreram depressão, e que terminaram suas vidas precocemente, uma enforcada, outra consumida por uma doença. King relata os sentimentos de impotência e compaixão que sente até hoje pelo que as duas garotas passaram. Em uma época em que o bullying não era discutido e combatido, mas considerado normal entre os alunos, pode ser compreensível porque o autor nada fez para ajudar as colegas. Ou seus pais. Ou a direção e pedagogos da escola. Mas não é aceitável. Aliás, ainda hoje, pela quantidade de filmes que são produzidos com histórias passadas dentro de escolas americanas, parece que pouca coisa mudou, porque o ambiente continua sendo um inferno.

A revolta que King sentia, e sente, sobre o tema, tem reflexo em CARRIE. É fácil realizar esse paralelo quando ele define o destino de cada vilão. Uma parte específica é muito prazerosa de ser lida, que é quando o pai de Chris exige que o diretor demita uma professora que suspendeu a filha e a proibiu de ir no baile de formatura pelo bullying que ela exerceu sobre Carrie. Sustentando uma posição firme e rebatendo todas as exigências, o diretor da escola consegue manter a proibição e ainda deixa o pai de Chris sem reação. Pena que isso não aconteceu na vida real das duas colegas de King.

Outra discussão pertinente em CARRIE é o fanatismo religioso, algo recorrente nos livros de King. Poucos temas conseguem despertar tanto terror como personagens movidos por vozes de um deus próprio que clama por atos cruéis e assassinos. O “bem” que deve ser perpetuado sobre a dor do outro, sobre a privação da liberdade, sobre a exclusão da vontade de se ter uma vida própria. Convicções construídas em benefício próprio, para justificar atos que independem do que qualquer outra pessoa pensa. Novamente é algo que sai da ficção e encontra iguais na vida real. A religião é usada como arma política, preconceituosa, excludente e assassina. A história do mundo possui a maioria das páginas com exemplos de atos desumanos em nome da religião. O que deveria ser um direcionador para a compaixão, se tornou uma forma de poder e prisão usada por grupos de pessoas que se beneficiam.

CARRIE é um livro curto, leitura muito rápida, coisa rara nas obras de King. Metade dele é em prosa e narra os acontecimentos sob a perspectiva de diferentes personagens. A outra metade são reproduções de notícias e depoimentos sobre Carrie, a cidade e a tragédia que acontece no fim da história. O paralelo entre o que aconteceu e a perspectiva do que aconteceu por parte de quem não vivenciou, é muito interessante e demonstra como fatos podem ter diferentes interpretações dependendo de quem escreve e sobre o que se acredita. Uma leitura forte, impactante, cheia de significados e propícia para levantar discussões sobre muitos temas. É um terror, mas não pela parte sobrenatural, e sim pelos atos cruéis perpetuados pela mãe de Carrie, por Chris e por Billy. Atos embasados na realidade, e isso é o maior terror que se pode ler.

A edição que eu comprei é a recentemente lançada pela Suma e faz parte da coleção Stephen King. Capa dura, título em alto relevo, miolo de luxo, com vários extras. Um capricho que faz juz ao conteúdo.


AVALIAÇÃO:


AUTOR: Stephen King
TRADUÇÃO: Regiane Winarski
EDITORA: Suma
PUBLICAÇÃO: 2022
PÁGINAS: 208


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