De Margaret Atwood, O CONTO DA AIA é um dos romances mais importantes quando o assunto é ficção distópica. Lá, a realidade imaginada seguia uma sociedade com fortes viéis religiosos, onde as mulheres não tinham mais direitos. Elas eram dividas em castas, como esposas, servidoras, e a mais sofrida, era a condição de aia. Sendo basicamente um instrumento de estupro para casais poderosos inférteis terem seus filhos. Trinta e cinco anos depois, temos OS TESTAMENTOS, a tão esperada e aguardada continuação, mostrando novos pontos de vista sobre essa sociedade e um tão esperado colapso dessa instituição macabra.

A narrativa acompanha três diferentes mulheres e seus relatos, um em forma de diário e os outros dois em forma de depoimento. Uma delas exerce uma posição de poder e influência, numa organização que tinha como objetivo manter a ordem dentre as novas castas das mulheres. Ela era uma grande líder e fez muitas coisas para implantar e fortalecer esse sistema de governo opressor. Mas agora algo mudou e ela quer ajudar a derrubar tudo o que ajudou a construir. Seu relato é realmente um diário de arrependimento, um último suspiro, um ato de coragem e rebeldia antes de irem atrás de sua própria pessoa. Para quem já leu o livro anterior, ou assistiu à série, descobrir quem é essa personagem será um grande choque, pois imaginar uma redenção para essa mulher era algo extremamente utópico. Mas a autora firma essa mudança com muito talento na trama, pois ao mostrar o passado dessa mulher, fica claro as suas intenções. Às vezes não temos escolhas, fazemos coisas apenas para sobreviver e nunca é tarde para seguirmos um caminho diferente.

O segundo relato, em forma de depoimento, é descrito por uma jovem que cresceu dentro da Republica de Gileade, esse governo totalitário que foi formado dentro do antigo Estados Unidos. Ela é uma jovem afortunada, filha de um importante Comandante, e pelos seus pequenos olhos, acompanhamos o dia-a-dia da classe rica. Mas coisas começam a piorar, quando sua mãe morre e seu pai se casa novamente. Sua madrasta quer ter o próprio filho, através de uma aia, e o que resta para a jovem menina é ser forçada a se casar para ir embora. Durante esses fatos, a menina tem mais ou menos 13 anos e será casada com um homem muito mais velho, viúvo várias vezes e com fama de ser um assassino de esposas.

Com esse arco, a autora nos mostra que a vida para a mulher era um inferno, não importando se ela era rica ou pobre, privilegiada ou não. O relato é triste e chocante, quando nos deparamos com a criação de uma criança, longe da educação e do amor. A menina não entende porque tem que se casar, por que não pode viver a sua vida, por que não pode escolher de repente viver fazendo pão ou tarefas simples, por que ela precisa se casar? Tudo só piora quando a jovem passa por uma experiência de assédio, vindo de um homem importante, pai de uma de suas amigas. O que fazer agora? Para ela só resta viver com esse intenso trauma, já que ninguém pode lhe ajudar, afinal quem acreditaria na palavra de uma menina contra um homem conhecido e respeitado por todos?

O terceiro e último depoimento é também de uma jovem menina, dessa vez uma que mora no Canadá, país que serve de refugio para todos que estão fugindo de Gileade. Lá ela vive com seus pais, que trabalham numa espécie de brechó. Ela não entende bem o que eles fazem lá. A menina fica ainda mais confusa, pois seus pais a protegem num nível alto demais, segundo a menina. Eles dizem que fazem um trabalho importante, mas que trabalho é esse? A vida da menina vira de cabeça para baixo, quando seus pais são mortos num ataque terrorista. Agora a jovem também é um alvo, dessa vez de sequestro. Sendo assim, ela rapidamente precisa ser escondida. Nesse arco, nós temos a visão de fora, que também era difícil, pois o colapso dos Estados Unidos mudou todo o mundo. Agora muitos países não aceitam imigrantes americanos, com medo de retaliação de Gileade. Para o povo só resta mendigar e sobreviver com os restos.

É neste capitulo também que conhecemos um pouco do Mayday, organização rebelde que tem o objetivo de destruir esse governo totalitário de uma vez por todas. As esperanças aumentam quando o Mayday começa a receber informações privilegiadas de alguém que ocupa a alta cúpula de Gileade. Seria isso verdade ou um golpe? Não dá pra saber com certeza, mas essa jornada vai levar nossas três personagens a se encontrarem dentro desse governo macabro, cada uma com uma função importante para cumprir, com o objetivo final de acabar com Gileade de uma vez por todas.

Mas o que uma jovem de dentro, uma jovem de fora e uma mulher poderosa poderiam fazer para acabar com esse governo? Como elas se ligam? Quem são elas? São segredos presentes na leitura, e quando cada um deles é revelado, o leitor só precisa catar a cara do chão. São desdobramentos surpreendentes e que fazem muito sentido. A verdadeira identidade das meninas também é algo incrível, que o livro constrói com calma e cautela. Faz total sentido dentro da trama, graças ao talento da autora de dar tempo ao tempo, informações aqui não são jogadas gratuitamente na cara do leitor.

A leitura segue uma narrativa grande, que se alterna entre um capítulo para cada mulher, mas seguindo uma certa cronologia. A prosa é intensa, mas consegue ser, de alguma forma, mais leve em comparação ao O CONTO DA AIA, então não espere descrições explicitas de violência ou passagens densas dramaticamente. Tem, sim, no livro, partes pesadas, mas em quantidade bem menor. Os capítulos, na sua maioria, são pequenos e a divisão não poderia ser melhor, nunca deixando o livro cansativo. Aliás, para quem leu o anterior ou assistiu à série, esse livro traz várias referências de cada uma dessas mídias. Uma autêntica continuação de ambos.

O livro se encerra da mesma forma que o seu anterior. As coisas acontecem muito depressa e como a leitura é baseada em testemunhos de mulheres que tiveram grandes papeis nessa conclusão, fica compreensivo que não deu para elas ficarem sentadas falando mais e mais para saciar o leitor. Sabemos o que aconteceu com o governo e com elas, através de um seminário acadêmico que estudiosos estão fazendo, anos e anos depois dos fatos descritos neste livro. Os depoimentos foram achados escondidos e agora eles estudam para entender o que aconteceu e se são originais ou não. A passagem de tempo entre os fatos descritos no livro e as conversas desse seminário tem mais ou menos cem anos de diferença. Com isso, todo o diálogo fica ainda mais nebuloso e interessante, mas é uma forma sensacional da autora encerrar sua narrativa. Modos convencionais e coisas normais? Aqui não.

De longe, uma continuação para O CONTO DA AIA parecia uma ideia bem ruim, pois o primeiro livro se encerra com perfeição. Mas mostrar outros pontos de vistas, de mulheres em três lugares diferentes, com um intervalo de mais ou menos quinze anos entre cada livro, faz essa leitura ser além de sensacional, extremamente necessária. É um livro que você facilmente pode devorar, a leitura é uma das mais fluidas que eu já tive o prazer de conferir. Além de continuar uma história bastante interessante, o livro não cansa de fazer paralelos com a sociedade em que vivemos nos dias de hoje. Tudo no livro é só ficção exagerada? Nunca poderia acontecer, né? São alertas que levamos ao fechar o livro, mas para todo o sentimento ruim, fica a esperança de bons atos, boas pessoas e dias melhores.


AUTORA: Margaret ATWOOD
TRADUÇÃO: Simone CAMPOS
EDITORA: Rocco
PUBLICAÇÃO: 2019
PÁGINAS: 445


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