O escritor Garrard Conley, aqui em seu livro de estreia, relata em primeira pessoa sua triste e chocante passagem, durante a adolescência, num grupo religioso que pregava e prometia a infame “cura gay” para seus “pacientes“. BOY ERASED – UMA VERDADE ANULADA é um best-seller, virou filme e, recentemente, se envolveu numa polêmica aqui no Brasil.

Garrad é um jovem inteligente que ainda não consegue aceitar seus instintos. O rapaz sente atração por homens e, fora isso ser um choque quando se é novo e imaturo, Garrad tem que lidar com seus pais que são evangélicos praticantes e muito fervorosos. Seu pai é pastor e tem o desejo de ter a própria igreja, tem uma vida de aparência e gosta de ser o exemplo perfeito de família para todos. Sua mãe também é bastante doutrinada, mas, às vezes, apresenta lapsos de uma maior compreensão e aceitação sobre como as pessoas vivem fora da bolha que eles estão instalados.

O rapaz é uma pessoa triste e insegura. Ele meio que é forçado a namorar uma menina de sua igreja e seu relacionamento com ela é frio e sem amor. Mas a moça parece não ver problemas nisso, e todos à sua volta, acham que ambos são um casal perfeito, prontos para o casamento. Os problemas começam a se destacar quando Garrad entra para a faculdade e, depois de uma experiência horrível, ele é tirado do armário à força, e a reação de sua família é procurar ajuda com especialistas, que para eles são outras pessoas da igreja. Garrad também é doutrinado, não se aceita e deseja muito que sua homossexualidade suma da noite para o dia. É imposto a ele participar de um acampamento cristão e caro, que promete curar esses “impulsos impróprios“, caso queria terminar sua faculdade, ser sustentado e morar na casa dos seus pais.

O livro é de memórias. No começo já apresenta uma estrutura diferente, como se realmente os relatos fossem pensamentos do autor num momento de reflexão. A estrutura é totalmente não linear e chega a ser bem fácil se perder na trama. Às vezes temos as descrições do dia-a-dia no acampamento, sua rotina na faculdade e detalhes sobre seu relacionamento com seus pais. Mas conforme vamos conhecendo mais da personalidade do protagonista e em como a vida dele está, a leitura consegue se tornar fluida e bastante intensa. O acampamento ocupa grande parte do livro e os métodos de cura lá se baseiam na vergonha e no desmantelamento da sua saúde mental. Os “pacientes” eram submetidos a várias dinâmicas em grupo, onde eram forçados a descrever seus pecados para todos, eles não podiam conversar entre si, construir amizades, ficarem sozinhos em nenhum lugar, eram supervisionados até mesmo nos banheiros. As dinâmicas consistiam em passagens distorcidas da Bíblia cristã e também em aulas para ensinarem homens a agir como homens e mulheres a se portarem com decência.

O acampamento também tinha várias regras ridículas, e acompanhar tudo isso é muito doloroso. Lá tinha várias pessoas internadas, algumas à força, e suas histórias de vida são ainda mais pesadas. A passagem de Garrad por lá foi curta, porém suficiente para enlouquecer o rapaz, e deixou sequelas eternas. A relação de Garrad com sua família é um triste lembrete que casos assim acontecem aos montes, onde amar não é o suficiente, onde aceitar as diferenças alheias é uma tarefa quase impossível. A leitura não é fácil e os pensamentos do protagonista são afiados como uma faca. Ninguém que passa por isso iria ter uma boa saúde mental, e quando as dores são muito intensas, o suicído parece a única solução.

Felizmente, o livro traz uma mensagem positiva de superação e resistência. Garrad amadureceu, se formou na faculdade, encontrou refúgio na escrita e, o principal, se conheceu internamente. Eu ter um começo ruim, não significa que terminarei mal. Garrad e seu pai nunca se entenderam e o machucado ainda é profundo, mas com sua mãe as coisas parecem ter avançado e isso traz esperança de dias melhores para muitas pessoas que pensam estarem sozinhas.

É um livro conciso e que se foca exclusivamente na experiência de Garrad, para o leitor muita coisa pode ter ficado em aberto, mas o necessário foi apresentado, nem sempre tudo vai ter um desfecho. Não é uma leitura fácil, mas é um relato importante e que precisa ser discutido, ainda mais no mundo em que vivemos onde a intolerância nunca esteve tão forte. Onde até mesmo figuras centrais no governo não escondem sua repulsa à comunidade LBGT. São tempos difíceis, mas o sol sempre volta e, depois da tempestade, nós sempre teremos um arco-íris.

O livro ganhou uma adaptação cinematográfica estrelada por grandes atores, como Russell Crowe e Nicole Kidman. O papel principal ficou com o jovem Lucas Hedges, que mesmo estando no início da carreira, já acumulou uma indicação ao Oscar, graças a seu excelente desempenho no filme MANCHESTER À BEIRA-MAR. E na pele de Garrad, o jovem forçado a ir para o acampamento de “cura gay“, o ator se sai muito bem, imprimindo no seu personagem uma altíssima dose de tristeza e incertezas. O elenco todo está ótimo e é de longe a melhor coisa do filme. Porém, a adaptação de BOY ERASED está longe de ser perfeita. O roteiro e a direção se esforçam bastante para copiar extremamente tudo do livro para as telonas, até mesmo a estrutura não cronológica, fragmentada, está no filme. Mas um filme não é um livro, são meios diferentes de se contar uma história, cada um tem suas regras e elas precisam ser seguidas para o projeto não ser um ruim e, infelizmente, nesse quesito, os realizadores deslizaram.

Ao acompanhar o filme é notável a falta de desenvolvimento dos personagens coadjuvantes e das subtramas apresentadas ao espectador. O filme se distancia do livro ao trabalhar mais os outros “pacientes” do acampamento e isso rende cenas extremamente dolorosas. Mas não são todos que recebem esse cuidado e enquanto a trama caminha, parece que o filme não se importa em dar voz a outros tipos de dramas presentes naquele recinto maldito. A passagem de Garrad na faculdade rende um dos momentos mais horríveis de toda a produção, porém pouco tempo depois, nada mais se é falado sobre isso. Um desenvolvimento nesta área injetaria no filme muito mais conteúdo e, ao não fazer isso, a trama perde muita força. A estrutura não linear chega uma hora que cansa e a falta de foco do roteiro no ato final enfraquece um pouco a conclusão. Mas ainda continua sendo um filme muito importante, com um grande elenco talentoso, uma trama forte e pesada, com alguns defeitos, mas ainda impactante.

No Brasil, o filme seria distribuído pela Universal Studios, a estreia estava agendada para o dia 31 de janeiro, porém um pouco antes, o estúdio anunciou o cancelamento do lançamento nos cinemas, prometendo um futuro lançamento em vídeo/dvd. E a polêmica começa aqui, graças ao ator Kevin McHale, conhecido por interpretar o jovem cadeirante na série GLEE, depois de ter postado em seu Instagram um stories acusando o governo brasileiro de censurar o filme. Importante ressaltar que o ator não apresentou nenhuma prova para essa afirmação e, pouco tempo depois, até mesmo o próprio Garrad Conley, autor do livro Boy Erased, lamentou sobre seu filme ter sido censurado aqui depois de tomar conhecimento desse stories.

Os fatos são que o filme, infelizmente, foi um fracasso comercial. Custou aproximadamente 36 milhões de dólares e arrecadou míseros 6 milhões nas bilheterias americanas. O filme também não foi um sucesso de críticas, fracassou na temporada de premiações e no Oscar conseguiu um total de zero indicações. E esse filme fez uma pesada campanha para as premiações, apenas algumas indicações já dariam um hype maior, aumentando a bilheteria, mas isso não aconteceu. O cancelamento é bastante sensato e dificilmente esse filme seria um sucesso por aqui, já que provavelmente teria um lançamento muito limitado e, some a isso, o fato de que o filme já se encontra na Internet com imagem em alta definição e legendas em português. É importante ressaltar que fake news é uma vergonha e não deve ser propagada por nenhum lado da moeda. Nem por direta, nem por esquerda, nem por héteros e nem por LBGTs. Não existe nenhuma prova de censura e o capitalismo só liga para dinheiro. Não importa se o filme é culturalmente importante, se não der dinheiro, eles não lançam.

Polêmicas de lado, o livro traz um relato doloroso e importante, precisa ser muito mais divulgado e conhecido para que horrores como esse nunca mais aconteçam. O filme também vale uma conferida, seu ótimo elenco faz tudo valer a pena.


AVALIAÇÃO LIVRO:
AVALIAÇÃO FILME:


AUTOR: Garrard Conley autor e um sobrevivente da terapia de conversão, ele é um ativista e palestrante do Penguin Random House Speakers Bureau, dando palestras em escolas e locais de todo o país sobre compaixão radical, escreve sobre trauma e sobre como crescer gay. Ele recebeu bolsas de estudo das Conferências de Escritores da Bread Loaf, Sewanee e Elizabeth Kostova Foundation e facilitou as aulas para a Catapult, o Workshop de Escritores da Sackett Street e o Fine Arts Works Center em Provincetown. Ele também é o instrutor de memórias do programa Memoir Incubator da GrubStreet.
TRADUÇÃO: Carolina SELVATICI
EDITORA: Intrínseca
PUBLICAÇÃO: 2019
PÁGINAS: 310


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