Howard Phillips Lovecraft, ou simplesmente H. P. Lovecraft, se tornou um dos maiores e mais influentes escritores de terror de sempre. Suas histórias são uma mescla desse gênero, com um toque do fantástico mais ficção-científica. Uma de suas criações que mais chamou a atenção, e que passou a integrar obras de outros autores, e não apenas em livros, mas também em filmes e séries de televisão, é o Necronomicon, um grimório que contém uma coleção de rituais de ressuscitação, de comunicação com os mortos, de como viajar entre dimensões, de como invocar criaturas malignas aprisionadas no inferno, entre outras finalidades. A lenda diz que basta uma leitura em suas páginas, para uma pessoa normal ficar louca e morrer.

Lovecraft era americano, nascido em 1890 e falecido em 1937, devido a um câncer no intestino. Ele nomeava seu estilo como “cosmicismo” ou “terror cósmico”, pelo qual a vida é incompreensível ao ser humano e o universo é infinitamente hostil aos seus interesses. Talvez por essa diferença em relação a autores mais conhecidos na época, ele não fez muito sucesso durante seu período de vida, e apenas após sua morte, seus livros ganharam notoriedade.

Entretanto, esse mesmo estilo trazia algo de sua personalidade que, ainda hoje, levanta uma grande polêmica: racismo. Algumas partes das narrativas de seus principais livros, são carregados de preconceito e pré-conceito, não apenas velado, mas ofensivo ao extremo. Era comum ele dar ao afrodescendente, mas não só, também a estrangeiros, o papel de vilão, de monstro, de ser inferior, de dono de tudo o que era ruim.

O negro foi nocauteado e um breve exame nos revelou que ele assim ficaria. Ele era uma coisa grotesca, parecida com um gorila, com braços anormalmente longos que eu não poderia evitar de chamar de patas dianteiras (…). O corpo deve ter parecido ainda pior em vida – mas o mundo contém muitas coisas feias

Um de seus contos, THE RATS IN THE WALLS, publicado em 1923, trazia o gato do protagonista com o nome de Nigger Man. Para quem não sabe, “nigger”, ou “nigga”, é um dos adjetivos mais pejorativos que existe nos Estado Unidos, extremamente racista, e que pode levantar uma revolta contra quem o usa. Por causa disso, em 1950, o nome do animal foi trocado para Black Tom. E neste ponto, chegamos à obra de Victor LaValle, A BALADA DO BLACK TOM, uma adaptação do conto O HORROR EM RED HOOK, de Lovecraft, publicado em 1925. Só que além da adaptação,LaValle insere a visão de um personagem que não existe no original, que foi trazido de THE RATS IN THE WALLS, o tal Black Tom, mas na personificação de um jovem negro do Brooklyn.

LaValle ocupou sua juventude no consumo de obras de Lovecraft, Stephen King, Shirley Jackson e Clive Barker. É neles que baseia seu estilo de escrita e sua criatividade. Entretanto, como afro-americano, conforme foi amadurecendo, passou a identificar os trechos racistas, ofensivos à sua pessoa, nas histórias de Lovecraft. LaValle ficou sem saber como separar o brilhantismo, do racismo; como admirar um autor que era brilhante na escrita, mas que espezinhou sua raça, bem como outras raças, e até mesmo estrangeiros ao seu país? Então ele decidiu usar o meio de comunicação em que era melhor: a escrita. A BALADA DO BLACK TOM é uma homenagem e uma crítica a Lovecraft, uma forma de LaValle responder a histórias brilhantes, mas ofensivas em determinados pontos.

A narrativa de A BALADA DO BLACK TOM é passada na Nova York de 1924 e é dividida por dois personagens. Na primeira parte, acompanhamos Charles Thomas Tester, um afro-americano que mora no Harlem com seu pai doente, Otis. Thomas sobrevive fazendo pequenos trabalhos de entregador, que muitas vezes envolvem itens detentores de magia que fazem parte do oculto, enquanto toca violão e tenta cantar tão bem quanto seu pai. Em uma dessas entregas, ele é abordado por um milionário excêntrico, Robert Suydam, que lhe oferece uma grande soma de dinheiro para tocar em uma festa que irá dar em alguns dias. Suydam está a ser investigado por um policial corrupto, Malone, que sabe do tipo de trabalho que Thomas realiza, e não gosta do envolvimento de Thomas com Suydam.

O texto de LaValle mostra todo o preconceito da época. Thomas sentem medo de sair de seu bairro para fazer entrega em bairros de brancos. No caminho, ele descreve como as pessoas olham com medo para ele, como se ele fosse um marginal, apenas por causa da cor de sua pele. Também é bem clara a forma preconceituosa que Thomas é tratado por Malone, que não esconde o racismo que possui, nem o quanto é corrupto. Mas o melhor dessa primeira parte, está no relacionamento de Thomas com Otis, seu pai. Em um determinado capítulo, os dois vão a um clube do bairro para comer e conversar, um dia antes da tal festa de Suydam. O diálogo que Otis tem com o filho sobre quem eles são como raça, é profundo, duro, realista. Algo que apenas quem já sentiu isso na pele pode escrever.

Na segunda parte, a narrativa passa a acompanhar Malone. Nela, confirmamos todos os defeitos dele. Se antes podia existir alguma dúvida sobre o ponto de vista de Thomas, nesta parte essa dúvida se dissipa. Não são pensamentos ou ações forçadas, mas coerentes com a posição da maioria das pessoas daquela época. Ainda mais policiais corruptos. Essa parte é mais fiel ao conto original, uma vez que Malone é o personagem principal de O HORROR EM RED HOOK. E é também nessa parte, que Thomas assume seu papel como Black Tom.

Depois dessas informações, você pode estar pensando sobre onde reside o terror da história. Bem, o terror reside no fato de que Suydam quer abrir uma porta para uma dimensão onde dorme um demônio que pode matar quase toda a população do planeta, escravizando os que não morrerem, e tornando poderosos aqueles que o ajudarem. Thomas é uma peça no plano de Suydam, Malone é o policial contratado por outras forças ocultas para tomar esse poder de Suydam. Entretanto, as coisas dão errado quando Thomas não realiza uma entrega, porque sabe do imenso perigo daquilo que está entregando. Malone vai atrás dele para recuperar o item, algo dá errado, e Thomas decide usar o plano de Suydam para ganhar um poder que permitirá que ele se vingue de Malone e de todos que lhe fizeram mal.

A história de Thomas e Malone ocupa 130 páginas do total de 180 páginas do livro. Após sua conclusão, a editora brinda o leitor com uma pequena explicação de como era Lovecraft, do quanto seu racismo está inserido em suas obras e cita os motivos que levaram LaValle a fazer essa releitura. Logo em seguida, temos o conto original, O HORROR EM RED HOOK. A editora tem a coragem e a sinceridade de informar que “ele é integral e que foi traduzido sem amenizar os termos escolhidos por Lovecraft, buscando seus equivalentes em impacto e intolerância”. A editora ainda informa que “os problemas do conto vão além de descrições pejorativas dos que não são brancos, mas em também atribuir imediatamente a eles a responsabilidade dos males que acometem o bairro, além de exprimir um desejo xenofóbico de acabar com toda imigração”. Para completar a excelência da edição, os extras e o conto original foram impressos em papel preto e letras brancas, tudo protegido por uma capa dura. Um trabalho extremamente competente e indispensável na sua estante.

A BALADA DO BLACK TOM, embora utilize de partes das ideias de Lovecraft, tem uma originalidade própria, e uma qualidade que suplanta o original, não apenas no terror que aplica, mas na narrativa, na construção dos personagens, na densidade e na coerência da história, sem precisar ofender e marginalizar qualquer pessoa. Uma história cheia de magia, de reviravoltas, que se concentra no desejo de igualdade e de justiça, mesmo que seja através de uma vingança. Seja você fã ou não do gênero, acredite, vale muito a leitura.

TREZE FATOS SOBRE LOVECRAFT

UM: Lovecraft era o único filho de Winfield Scott Lovecraft, negociante de joias e metais preciosos, e Sarah Susan Phillips, oriunda de família notória, que podia traçar suas origens directamente aos primeiros colonizadores americanos;

DOIS: Quando Lovecraft tinha três anos, seu pai sofreu uma aguda crise nervosa que o deixou com profundas sequelas, obrigando-o a passar o resto de sua vida em clínicas de repouso. Assim, ele foi criado pela mãe, pelas duas tias e pelo avô, Whipple van Buren Phillips;

TRÊS: Lovecraft era um jovem prodígio que recitava poesia aos dois anos e já escrevia seus próprios poemas aos seis;

QUATRO: Lovecraft era uma criança constantemente doente. Seu biógrafo, L. Sprague de Camp, afirmou que o jovem Howard sofria de poiquilotermia, uma raríssima doença que fazia com que sua pele fosse sempre gelada ao toque. Dados seus problemas de saúde, ele frequentou a escola apenas esporadicamente, mas lia bastante;

CINCO: Em 1908, ele sofreu um colapso nervoso, acontecimento que o impediu de receber seu diploma de graduação do ensino médio e, consequentemente, complicou sua entrada numa universidade;

SEIS: Sua mãe nunca chegou a ver nenhum trabalho do filho publicado, tendo morrido em 1921 após complicações de uma cirurgia;

SETE: Lovecraft trabalhou como jornalista por um curto período, durante o qual conheceu Sonia Greene, com quem viria a casar. Ela era uma judia natural da Ucrânia, oito anos mais velha que ele, o que fez com que sua tias protestassem contra o casamento. O casamento durou poucos anos;

OITO: Para sobreviver, considerando-se que seus próprios textos aumentavam em complexidade e número de palavras, dificultando as vendas, Lovecraft apoiava-se como podia em revisões e ghost-writing de textos assinados por outros, inclusive poemas e não-ficção;

NOVE: Muitos dos trabalhos de Lovecraft foram directamente inspirados por seus constantes pesadelos, o que contribuiu para a criação de uma obra marcada pelo subconsciente e pelo simbolismo;

DEZ: Lovecraft é um dos poucos autores cuja obra literária não tem meio-termo: volta-se única e exclusivamente para o horror, tendo como finalidade perturbar o leitor, depois de atraí-lo para a atmosfera, o ambiente, o clima daquilo que lê. Muitas vezes, ele parte de uma situação, à primeira vista, banal para, paulatinamente, revelar o horror por trás dela;

ONZE: Racismo é o ponto mais controverso da obra de Lovecraft, pois algumas passagens deixam transparecer suas ideias abertamente racistas. Em uma carta endereçada a Lillian D. Clark, em 1926, ele afirma que qualquer um que não tivesse “a pele clara dos nórdicos” era inferior;

DOZE: O racismo do autor foi um dos motivos que levou a premiação World Fantasy Award a modificar o design de seu trófeu, que até 2014 trazia um busto de Lovecraft. A mudança aconteceu após uma intensa campanha de autores do mundo todo, que chegaram a assinar uma petição sobre o caso;

TREZE: Em 1936, a notícia do suicídio do seu amigo Robert E. Howard deixou-o profundamente entristecido e abalado. Nesse ano, a doença que o mataria (câncer no intestino) já avançara o bastante para que pouco se pudesse fazer contra ela. Pelos meses seguintes, Lovecraft aguentou dores cada vez mais crescentes, até que, a 10 de março de 1937, viu-se obrigado a internar-se no Hospital Memorial Jane Brown. Ali morreria cinco dias depois. Contava então 46 anos de idade;


AVALIAÇÃO:


AUTOR: Victor LaValle é o autor de uma coleção de contos, quatro romances e duas novelas. Ele recebeu inúmeros prêmios, incluindo o Whiting Writers Award, o Ford Artists Fellowship, o Guggenheim Fellowship, o Shirley Jackson Award, o American Book Award e a chave para o Southeast Queens. Ele foi criado em Queens, Nova York. Agora, vive em Washington Heights com sua esposa e filhos. Ele leciona na Columbia University. Ele pode ser difícil de alcançar, mas ele ainda ama você.
TRADUÇÃO: Petê RISSATI
EDITORA: Morro Branco
PUBLICAÇÃO: 2018
PÁGINAS: 180


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