A história de “Astro Boy” se passa em um futuro onde robôs coabitam com humanos, e acompanha a jornada de Atom, um robô menino criado pelo Dr. Tenma para substituir seu filho, Tobio, que morreu em um acidente. Atom possui força sobre-humana, inteligência avançada e um forte senso de justiça.

Após ser abandonado por Dr. Tenma por não ser capaz de substituir emocionalmente seu filho, Atom é acolhido por outro cientista, Dr. Ochanomizu, que se torna uma figura paterna e guia moral para ele. Atom, então, usa seus poderes para proteger a humanidade, enfrentando inimigos robôs e humanos que ameaçam a paz.

Astro Boy” é uma obra-prima que transcendeu sua época e moldou não apenas o gênero de ficção científica nos quadrinhos, mas também a forma como o Japão e o mundo passaram a enxergar o mangá como uma forma de arte e narrativa complexa. Criado por Osamu Tezuka nos anos 1950, o personagem Atom (ou Astro Boy, como ficou conhecido no ocidente) não é apenas um robô com poderes fantásticos. Ele é uma representação de temas profundamente filosóficos, sociais e emocionais que ressoam até hoje.

Atom é criado como um substituto do filho falecido de Dr. Tenma, o que já estabelece o primeiro grande dilema da obra: a tentativa humana de substituir a perda emocional por uma construção tecnológica. Ao criar Atom, Dr. Tenma está tentando trazer de volta o seu filho, mas logo percebe que, por mais perfeito que o robô possa ser em termos físicos e intelectuais, ele não pode preencher o vazio emocional. Isso levanta questões sobre a natureza das emoções e da alma. É possível que uma máquina tenha sentimentos? O que nos faz verdadeiramente humanos?

Atom, em sua trajetória, busca um lugar no mundo. Ele é um robô com sentimentos, mas também uma arma com poderes imensos. Sua luta constante para provar que, apesar de ser uma máquina, ele possui uma moralidade e humanidade intrínseca, é um tema que permeia toda a série. Atom acaba funcionando como um espelho da sociedade humana, questionando nossas próprias falhas e contradições. Através dele, Tezuka explora o medo e o preconceito em relação ao diferente, seja ele uma máquina ou outra pessoa.

O mangá é inovador ao abordar questões de ética relacionadas à inteligência artificial, décadas antes de isso se tornar um tópico comum no mundo real. Tezuka anteviu muitas das preocupações atuais sobre a relação entre humanos e tecnologia, incluindo o dilema de até que ponto os robôs podem ser integrados à sociedade sem se tornarem ameaças ou superarem seus criadores.

A exploração dos direitos dos robôs é outra questão central na obra. Atom não é apenas um super-herói, ele é um símbolo de liberdade e autodeterminação para todas as máquinas. Em várias histórias, ele enfrenta dilemas éticos que o colocam em confronto direto com os desejos humanos de controle e domínio sobre a tecnologia. Tezuka, muitas vezes, coloca os robôs em situações em que eles são tratados como objetos descartáveis ou como escravos, refletindo injustiças sociais que ocorrem com minorias em muitas culturas.

Além disso, “Astro Boy” introduz ao público temas complexos como o pacifismo e a aceitação do diferente. Atom se recusa a matar, mesmo quando enfrenta ameaças que poderiam justificá-lo. Essa postura ressoa com o ideal humanista de Tezuka, profundamente influenciado pelos horrores que o Japão enfrentou na Segunda Guerra Mundial.

Atom começa sua trajetória como uma figura trágica, rejeitada por seu criador e forçada a viver em um mundo que o vê apenas como uma ferramenta. No entanto, ao longo do mangá, ele cresce como personagem, tornando-se uma figura de esperança para humanos e robôs. Sua relação com Dr. Ochanomizu, que o adota como um filho, também humaniza Atom, mostrando que, apesar de ser uma máquina, ele é capaz de desenvolver laços emocionais profundos.

Esse arco de crescimento é uma das maiores forças de “Astro Boy”. O público assiste à evolução de Atom de um robô abandonado para um herói global, com valores morais sólidos, empatia e compaixão. Isso contrasta diretamente com a desumanização que a sociedade moderna muitas vezes impõe tanto às máquinas quanto às pessoas.

Do ponto de vista histórico e cultural, “Astro Boy” foi um divisor de águas. Foi uma das primeiras obras a ser adaptada para anime em 1963, e sua popularidade ajudou a estabelecer a indústria de animação japonesa. A estética do “grande olho”, característica dos personagens de anime, foi popularizada por Tezuka, e seu estilo visual ainda é uma referência para inúmeros artistas.

Mais do que um marco visual, “Astro Boy” também abriu caminho para que temas adultos e filosóficos fossem explorados em histórias “para crianças”. Embora a obra seja, em sua superfície, uma aventura de ficção científica cheia de ação, suas camadas de complexidade temática a tornam acessível e interessante para pessoas de todas as idades. Isso demonstra a maestria de Tezuka como contador de histórias, equilibrando entretenimento com reflexão profunda.

Recentemente, uma outra obra que tem ligações com “Astro Boy” foi lançada, “PLUTO”, e preciso fazer uma paralelo. Escrito por Naoki Urasawa, “PLUTO” é uma homenagem e uma reinvenção de um dos arcos mais famosos de “Astro Boy”, “O Maior Robô da Terra”, e consegue trazer à tona novos significados e aprofundar temas já presentes no trabalho original de Osamu Tezuka. As duas obras, quando comparadas, oferecem uma perspectiva fascinante sobre a evolução da narrativa de ficção científica no mangá, ao mesmo tempo em que exploram temas humanos e existenciais em profundidades diferentes.

Em “Astro Boy”, Tezuka apresenta uma visão otimista e muitas vezes idealista do futuro. Apesar dos conflitos entre humanos e robôs, há uma crença subjacente de que ambos podem coexistir harmoniosamente. Atom representa essa esperança. Ele é um robô com uma moralidade inabalável, sempre disposto a perdoar e a lutar pelo que é certo, mesmo quando confrontado com adversários poderosos ou sistemas injustos.

No arco “O Maior Robô da Terra”, que é a base para “PLUTO”, Atom enfrenta outros robôs poderosos, todos criados para serem “os maiores”. O arco lida com a questão de poder e destruição, mas Tezuka, como de costume, humaniza os robôs e faz com que o conflito vá além de uma simples batalha entre máquinas. Ele toca em temas de sacrifício, identidade, e o que significa ser “o maior”. No entanto, o estilo de Tezuka, voltado para um público mais amplo e frequentemente com uma leveza e otimismo, trata os dilemas éticos e emocionais com uma abordagem menos sombria.

PLUTO”, por outro lado, é uma releitura mais sombria e introspectiva da mesma história. Naoki Urasawa, conhecido por seu domínio de narrativas psicológicas profundas, traz uma nova sensibilidade ao material original. Em vez de centrar a história em Atom, “PLUTO” segue o detetive robô Gesicht, que investiga uma série de assassinatos brutais de robôs e humanos. O que era uma história de superação em “Astro Boy” é transformado, em “PLUTO”, em um thriller psicológico que explora as complexidades emocionais e políticas de um mundo onde a fronteira entre robôs e humanos é cada vez mais tênue.

Uma das maiores diferenças entre “Astro Boy” e “PLUTO” é como cada obra aborda os temas da guerra, da violência e da humanidade. Enquanto “Astro Boy” tem uma visão mais otimista, com Atom constantemente buscando a paz e a reconciliação, “PLUTO” se aprofunda nas consequências devastadoras da guerra e na natureza violenta dos seres, sejam eles humanos ou robôs. Urasawa utiliza a história para explorar o trauma de guerra e as suas consequências psicológicas, tanto nos robôs quanto nos humanos. Os robôs em “PLUTO” são mostrados como sendo emocionalmente mais complexos, muitas vezes atormentados por dilemas existenciais e pela dor de serem tratados como ferramentas, mesmo quando têm consciência.

Na obra original, Atom é o personagem central e, embora seja uma figura trágica em alguns aspectos, ele nunca perde seu otimismo e inocência infantil. Em “PLUTO”, Atom é retratado de forma mais madura, com uma camada de tristeza e responsabilidade, algo que reflete o tom mais sombrio da narrativa de Urasawa. O Atom de “PLUTO” é mais silencioso, um personagem que reflete sobre sua própria existência e sobre as limitações de ser um robô, algo que apenas é tangenciado na obra original de Tezuka.

Um ponto importante de comparação é a relação entre Atom e Gesicht, o protagonista de “PLUTO”. Enquanto Atom é um robô menino que simboliza esperança e compaixão em “Astro Boy”, Gesicht é uma figura mais ambígua, lutando para entender suas próprias emoções e lugar no mundo. Gesicht representa a complexidade da inteligência artificial, um ser que, por mais avançado que seja, ainda não consegue se reconciliar completamente com suas emoções e os dilemas morais que enfrenta. Essa diferença reflete uma mudança no tom da narrativa: onde “Astro Boy” é sobre a esperança de que os robôs podem ser melhores do que os humanos, “PLUTO” é sobre o fato de que, mesmo os robôs mais avançados, carregam as cicatrizes e as falhas da humanidade.

Outro contraste importante está no estilo narrativo de cada autor. Osamu Tezuka, apesar de suas explorações filosóficas, manteve um estilo de narrativa mais acessível, com tons de leveza e momentos de humor, mesmo em suas histórias mais sérias. O visual de “Astro Boy” é icônico, com seu estilo de arte mais cartunesco e amigável para um público jovem. Isso permitiu que a história alcançasse uma audiência ampla, incluindo crianças, ao mesmo tempo em que explorava temas complexos.

Naoki Urasawa, por outro lado, é conhecido por sua habilidade em criar tensão psicológica e sua narrativa densa. O estilo de arte de “PLUTO” é muito mais realista e sombrio, refletindo o tom mais maduro da história. A trama é muito mais focada no suspense e na investigação, com cada personagem enfrentando suas próprias batalhas internas. Urasawa leva o tempo necessário para explorar os sentimentos dos robôs e dos humanos, criando uma atmosfera de incerteza e angústia que permeia toda a obra.

PLUTO” também aprofunda os temas éticos que Tezuka apenas tocou. O conceito de o que significa ser “humano” é desafiado constantemente em “PLUTO”, especialmente à medida que os robôs mostram emoções e lidam com o trauma de guerra. Urasawa explora mais a fundo as implicações da violência e do preconceito, e suas repercussões psicológicas. Além disso, a ideia de “quem é o verdadeiro inimigo” é complexificada, levantando questões sobre a natureza da maldade e do ciclo de vingança.

Tezuka plantou as sementes desses temas em “Astro Boy”, mas era limitado pelo formato e pelo público para o qual escrevia. Urasawa, ao revisitar essa história em “PLUTO”, conseguiu expandir esses conceitos, tornando a história muito mais filosófica e introspectiva. Ele humaniza ainda mais os robôs, ao ponto de o leitor começar a questionar se há realmente alguma diferença entre humanos e máquinas.

No final, “Astro Boy” é uma obra seminal que oferece uma visão tanto utópica quanto distópica sobre o futuro das relações entre humanos e máquinas. Ele continua relevante, pois as questões que levanta sobre inteligência artificial, ética, e o papel da tecnologia na sociedade são ainda mais urgentes hoje do que eram quando o mangá foi originalmente criado. Através de Atom, Tezuka nos força a confrontar não apenas nossos medos em relação ao avanço tecnológico, mas também nossa própria humanidade. É uma obra que merece ser revisitada continuamente, tanto por seu valor artístico quanto por suas reflexões profundas.


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AUTOR: Osamu Tezuka
ILUSTRAÇÕES: Osamu Tezuka
TRADUÇÃO: Renata Leitão
EDITORA: JBC
PUBLICAÇÃO: 2024
PÁGINAS: 424
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