Durante a Segunda Guerra Mundial, um avião cai numa ilha deserta, e seus únicos sobreviventes são um grupo de meninos em idade escolar. Eles descobrem os encantos desse refúgio tropical e, liderados por Ralph, procuram se organizar enquanto esperam um possível resgate.
Mas aos poucos — e por seus próprios desígnios — esses garotos aparentemente inocentes transformam a ilha numa visceral disputa pelo poder, e sua selvageria rasga a fina superfície da civilidade, que mantinham como uma lembrança remota da vida em sociedade.
Ao narrar a história de meninos perdidos numa ilha paradisíaca, aos poucos se deixando levar pela barbárie, Golding constrói uma história eletrizante, ao mesmo tempo uma reflexão sobre a natureza do mal e a tênue linha entre o poder e a violência desmedida.
“Senhor das Moscas” é uma história que usa muitos símbolos e metáforas para explorar temas difíceis como a perda da inocência, o conflito entre o bem e o mal e uma crítica à sociedade moderna. O isolamento na ilha funciona como uma pequena versão da sociedade, onde regras e leis são substituídas pelos instintos básicos. O livro é muito estudado em escolas e universidades por causa da riqueza dos temas e do estilo de escrita. Levanta discussões sobre psicologia social, ética, liderança e como o medo e o poder influenciam as relações entre as pessoas.
Existem quatro personagens principais que representam diferentes lados humanos e sociais. Ralph é o líder principal e simboliza a liderança democrática e a busca por ordem. Porquinho é um garoto baixo, um pouco acima do peso, que usa óculos e não gosta de seu apelido; ele representa a razão, a inteligência, a capacidade de pensar e a ciência. Simon é o menino que parece mais afetado psicologicamente pelo acidente e pela situação; ele encarna a espiritualidade, a bondade natural, a sensibilidade e a confusão. Jack é o líder dos coristas, é ambicioso e tem sede de poder; ele personifica a tirania, o caos e a atração pela selvageria.
Três desses personagens conseguem trabalhar juntos de forma organizada e equilibrada. Ralph se preocupa com a segurança das crianças. Ele cria planos para que possam se comunicar com algum navio que passe, usando sinais de fumaça. Define regras e constrói abrigos para todos, promovendo a disciplina e a organização através do uso da concha. Porquinho ajuda Ralph a realizar essas tarefas. Ele mostra como fazer a fogueira, como construir abrigos e como proteger as crianças menores. Simon usa sua sensibilidade para perceber as falhas nessas construções e entender os medos que surgem, como o “bicho”, que ele acaba desvendando.
O quarto personagem, Jack, é a força que destroi todo o equilíbrio. Ele traz o caos com um discurso simples, mas que convence pela emoção e pelo desejo. Sua ambição e sede de poder quebram a harmonia entre as crianças. Ele usa o “bicho” para criar a ideia de um grande inimigo e aproveita esse medo, prometendo proteção e segurança para quem o seguir. Além disso, ele promete fartura, usando a habilidade de seu grupo em caçar para oferecer carne e saciar a fome das crianças, que, com Ralph, comem apenas frutas. Jack representa a promessa de uma vida fácil, sem regras, mas que aos poucos se mostra controladora e tirânica. Quando as crianças percebem isso, já não podem mais escapar; com medo, elas acabam se transformando para se igualar a quem as domina.
Com esses quatro personagens no centro da história, “Senhor das Moscas” usa símbolos e metáforas em quase todas as suas páginas. A concha que Ralph e Porquinho utilizam serve para convocar reuniões e estabelecer o direito de falar. Ela se torna um símbolo de autoridade e organização, onde todos têm o direito de se expressar, mas sem interromper ou passar por cima da vez do outro, como na democracia de uma sociedade civilizada. Todos respeitam quem está com a concha, esperando sua vez de falar. Em determinado momento, mais para o fim da história, quando o caos entre os garotos já se instalou, a concha é quebrada, destruída, simbolizando o colapso da ordem social e a ascensão da tirania entre eles. Sem a concha, as regras que os guiavam se perdem, e a organização que existia desaparece.
Porquinho usa óculos, mas eles não servem apenas para ajudá-lo a ver melhor; também são um símbolo de racionalidade e conhecimento científico. Os óculos são usados para acender fogueiras, aproveitando o feixe de luz do Sol, que representa a esperança de resgate. No meio da história, os óculos são quebrados e roubados de Porquinho por Jack. Jack começa a usar os óculos como um objeto de conquista, uma representação de poder sobre a razão e a civilidade do grupo.
O “bicho” é uma criatura que, no início, existe apenas na imaginação das crianças menores, aparecendo em seus sonhos e visões. Ele representa o medo do desconhecido que desperta os instintos mais primitivos em cada pessoa. No meio da história, algo acontece que torna o “bicho” aparentemente real, convencendo todos de que ele de fato existe. Jack aproveita esse medo para convencer as crianças a segui-lo. Ele cria a figura de um grande inimigo e usa esse temor para prometer proteção.
O fogo está presente durante toda a história. Ele tem dois significados. Por um lado, o fogo representa a esperança de resgate e a conexão com a civilização, com as famílias, os amigos e a vida que tinham antes. Os meninos usam o fogo para fazer uma fogueira que pode ser vista por navios que passam, na esperança de serem resgatados. Por outro lado, o fogo também representa a destruição e o caos. É um poder que pode ser usado tanto para o bem quanto para o mal. Em dois momentos, o fogo consome, destroi e mata o que existe na ilha. Além disso, o fogo é usado como uma maneira de caça e castigo, mostrando como algo que era símbolo de esperança pode se tornar uma arma de destruição.
A ilha, que no início parece um paraíso intocado, representa a sociedade humana onde as regras sociais são testadas. Conforme a história avança, a ilha muda e começa a mostrar a perda dos valores morais e sociais dos meninos. A ilha fica quase destruída, mostrando como a falta de ordem afeta tanto as pessoas quanto a natureza. Isso mostra como a irresponsabilidade, a indiferença, a crueldade e o caos podem destruir a humanidade e o planeta.
Na metade da história, Jack e seu grupo caçam um porco na floresta. Eles matam o porco e cortam sua cabeça. Depois, colocam essa cabeça em uma estaca fincada no chão, no meio da mata, como uma oferenda ao “bicho”. É a maneira que encontram para tentar ser deixados em paz e se sentirem protegidos.
Os garotos que seguem Jack desde o início da história fazem parte do coro da escola. No começo, eles usam as roupas do coral: longas vestes pretas com símbolos religiosos. Há muita simbologia nesta caracterização, como o uso da religião para criar crenças que servem como forma de controle. A cabeça do porco é uma dessas representações; eles a usam como um símbolo que promete proteção e segurança em troca de fidelidade e obediência.
Mas a cabeça do porco tem ainda mais simbolismos e está no trecho mais subjetivo da história. Em um certo momento, Simon encontra a cabeça espetada em uma estaca no meio da floresta, já coberta de moscas, com a carne podre e ossos visíveis. A cabeça começa a falar com Simon e se apresenta como o Senhor das Moscas, a personificação do mal e da corrupção moral.
A conversa entre Simon e a cabeça mostra que o verdadeiro mal, o inimigo, está na escuridão que cada pessoa carrega dentro de si. Logo depois dessa conversa, Simon descobre a verdade sobre o “bicho” e corre para contar às outras crianças. Mas ele acaba descobrindo como são verdadeiras as palavras do Senhor das Moscas, tornando-se o protagonista de um dos momentos mais caóticos e terríveis de toda a história.
Aos poucos, as crianças, lideradas por Jack, liberam seus instintos mais primitivos. Elas pintam seus rostos, escondem suas identidades, abandonam suas roupas, ganham uma deterioração física, como se estivessem perdendo ou abandonando a civilidade. As máscaras que usam permitem que ajam sem responsabilidade, simbolizando a perda da individualidade e a desumanização. Elas param de agir por si mesmas e começam a agir como um grupo único, seguindo a vontade de Jack. Isso representa o poder e o controle dele, além da ameaça de opressão, castigo e até morte para quem se opuser.
Ao longo da história, três eventos somados representam a destruição dos elementos que mantinham as crianças civilizadas e marcam o ponto sem retorno, onde a selvageria domina completamente. Na parte final, há uma caçada ao último símbolo defensor da ordem, mostrando como aqueles que perderam a noção moral e social podem rejeitar e eliminar quem representa a razão. É essa perseguição que culmina na quase destruição da ilha e atrai o navio que resgata as crianças e restabelece a ordem. Isso mostra a dualidade entre destruição e salvação, como se apenas a destruição do que existe e que se corrompeu pudesse criar algo novo e melhor.
Muitos leitores podem pensar que o comportamento das crianças diante de circunstâncias difíceis e o abandono das estruturas sociais, levando ao caos e à destruição, parece exagerado. Eu não acho isso. Basta lembrar de eventos que aconteceram em cidades do Brasil em 2022. Quando a população mais pobre ficou sem os poucos recursos financeiros que tinha, mais de 100 pessoas invadiram supermercados e saquearam alimentos e outros produtos, em um ataque de fúria e desespero.
Se olharmos para a história humana, vemos muitos exemplos de pessoas agindo de forma caótica quando as estruturas sociais caem. Nessas situações, a lei do mais forte prevalece. O instinto básico de sobrevivência fica acima da racionalidade, e ações são cometidas sem considerar o nível de violência ou mortes. Quem se destaca nessas circunstâncias não é quem tem mais racionalidade ou um discurso equilibrado, mas aqueles que têm mais força, mais aliados e discursos que prometem salvação através de crenças, usando mitos ou religião contra um inimigo fácil de identificar.
“Senhor das Moscas” não tem apenas uma mensagem humana, social e religiosa, mas também política. Lembre-se de que a política governa nossa vida, está em tudo e todos, de forma direta ou indireta. Podemos ver os lados políticos em Ralph e Jack, principalmente por suas convicções. Ralph representa um lado mais humano, com mais compaixão e compreensão pelos outros, sendo igualitário acima de tudo. Já Jack busca o equilíbrio em um grupo que obedece a quem tem mais poder, onde a maioria trabalha para o benefício de uma liderança que mantém o controle usando a figura de um “inimigo” e com o apoio da religião como forma de doutrinação. É fácil identificar o mesmo padrão político nos dias de hoje.
“Senhor das Moscas” é um livro poderoso que explora a natureza humana de forma profunda e impactante. Publicado originalmente em 1954, é um dos romances essenciais da literatura mundial. Adaptado duas vezes para o cinema, traduzido para 35 idiomas, o clássico de William Golding — que já foi visto como uma alegoria, uma parábola, um tratado político e mesmo uma visão do apocalipse — vendeu, só em língua inglesa, mais de 25 milhões de exemplares.
Eu já tinha lido o livro alguns anos atrás, mas para esta resenha usei uma versão em quadrinhos que foi cuidadosamente feita pela Suma. Essa adaptação se mantém fiel à mensagem do livro, aos personagens, aos eventos e a todos os detalhes da obra. Todos os diálogos e narrações são idênticos ao texto original, assim como a representação da ilha e dos principais locais onde os personagens atuam.
Os desenhos de Aimée de Jongh utilizam uma paleta de cores cuidadosamente selecionada para transmitir diferentes atmosferas e emoções. O contraste entre os tons quentes e frios ajuda a direcionar a narrativa visual, sugerindo tranquilidade nas áreas mais claras e tensão nas áreas mais saturadas com laranjas e vermelhos vibrantes. O uso de sombras é sutil, mas eficiente, adicionando profundidade e movimento às cenas, sem sobrecarregar o olhar do leitor.
Os traços dos personagens são expressivos, transmitindo claramente suas emoções e intenções através de detalhes faciais exagerados e gestos dinâmicos. As linhas são fluidas e desenhadas com energia, capturando o movimento dos corpos de forma orgânica e contínua. A sequência de ações é cuidadosamente desenhada, criando uma fluidez visual que guia o leitor através da narrativa sem a necessidade de palavras, com cada quadro complementando o anterior em termos de composição e ritmo visual.
Minha sugestão é que você leia o quadrinho e o livro na ordem que preferir. A junção das duas obras torna a experiência completa e duplamente impactante.
AVALIAÇÃO:
AUTOR: William Golding ILUSTRAÇÃO: Aimée de Jongh TRADUÇÃO: Érico Assis EDITORA: Suma PUBLICAÇÃO: 2024 PÁGINAS: 352 COMPRE: Amazon |